Bricabraque – André Mellagi

É natural que o leitor identifique padrões durante a leitura de um livro, principalmente se existirem características bem marcadas ou recorrentes no texto como os labirintos e espelhos de Borges, ou os neologismos de Guimarães Rosa. Em Bricabraque, livro de André Mellagi, publicado em 2017 pela editora Patuá, cataloguei os contos em duas categorias. Para fugir das classificações do conto de Carl H. Grabo, vou tomar a liberdade de enquadrá-los em dois segmentos: o conto-enredo e o conto-recorte. No primeiro tipo as narrativas são apresentadas ao leitor com início, meio e fim, sequenciadas para montar uma história com uma ordem lógica; o segundo tipo é um pouco diferente, e trata de examinar um evento como se este fosse uma fotografia, de onde será extraído o sumo do momento escolhido pelo autor. 

André vai muito bem no conto-recorte, apresentando o que há de absurdo ou extraordinário em situações cotidianas. Interstícios é um bom exemplo: um casal conversa ao telefone, a mulher preocupada com algum objeto que perdeu enquanto o marido cuida de tarefas rotineiras como buscar um terno na lavanderia. É um conto que captura o leitor por sua fluidez e ironia, onde o protagonista vai sendo interrompido por diferentes interlocutores enquanto mantém a comunicação aberta com a mulher, situação comum para a geração está constantemente conectada e executando tarefas simultâneas (embora haja tanto de engano nesta última afirmação). Não é coincidência que o protagonista se atrapalhe em quase todas as interações; não é à toa que a atenção nas relações diárias esteja cada vez mais frágil.  Os contos Ínterim e Itinerário vão por este mesmo caminho, mostrando a complexidade social que existe nas viagens de ônibus por uma cidade imobilizada pelo trânsito. São contos em formato puro, a arte de esconder e mostrar o estrito necessário, e às vezes partem de frases simples, a armadilha por trás daquele um fio solto na camisa. Você não entendeu nada, diz a antagonista de Fenomenologia da Esfinge. Uma frase. O suficiente para dar substância a um dos melhores contos deste segmento da coletânea. 

Se o livro de André vai bem no conto-recorte, a magia de Bricabraque está no conto-enredo. E para compor algumas destas narrativas, André resgata as tradições de algumas mitologias mais populares. Em O itinerário de Hermes, o deus mensageiro é personificado em um viajante que pede carona para chegar à Boituva. É um conto à beira de estrada, que coloca Hermes no centro da narrativa. O mito do Caronte também tem espaço no livro, apresentando um testemunho pessoal do barqueiro do inferno durante uma viagem pelos rios do submundo. Dando espaço à cultura pop, Carta ao Papa-Léguas coloca o Coiote dos desenhos animados em uma situação simular à do Minotauro no conto A Casa de Asterión de Borges. André toma para si a criatura animada e a humaniza, explorando o fardo daquele que está condenado ao perseguir uma ave que sempre escapará por detalhes.

Bricabraque remete a estas lojas que vendem quase tudo. Geralmente as peças estão amontoadas, espalhadas e até penduradas, dando a impressão de que estamos diante de um caos controlado. Esta é uma impressão válida para o livro de André Mellagi e que justifica o título: estamos diante de um apanhado de contos diversificados, experimentações que variam em forma e que que podem ser econômicas, iniciadas com a enumeração dos objetos em uma sala de estar, ou simbólicas, partindo do anúncio de um animal desaparecido. Como em um tradicional bric-à-brac, há algo de misterioso e excepcional em cada peça que André escolhe para mostrar ao leitor.

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