Estela

Estela podia se parecer com muitas coisas, mas quando a conheci era uma mulher alta e clara, que falava pouco, mas contava histórias com seus olhos significativos. Estava sempre sorridente. Em seus dentes branquíssimos constava um alfarrábio de outro mundo – pequeninos holofotes que iluminavam um rosto fácil de se admirar.

Certa vez confessei à Estela meu fascínio pelas mulheres negras. Logo depois me arrependi e compreendi que meu comentário fora impróprio e talvez indelicado. Pedi desculpas e comentei que a língua é, por vezes, mais rápida que o raciocínio. Em vez de se zangar, fez reverência e disse que compartilhava de minha admiração. Concluí que o mundo seria outro ao descobrir a beleza da negritude, com seus cabelos quase sempre enrolados e suas bocas substanciosas.

Naquela noite fomos a um quarto tarifado e qual não foi minha surpresa ao beber de uma Estela negra, com os cabelos volteados sobre o ombro e uma boca que se apossava de meu entusiasmo. Ascendi ao delírio enquanto provava daquela mulher escura, de paladar denso, tomada de novos sabores somente para me agradar. Dormiu serena após nos esgotarmos. Aproveitei o relaxamento para deitar meu rosto próximo àqueles seios de azeviche.

Estela agia de acordo com meus desejos. Bastava saber de uma loucura ou volição minha, que se transmutava em tais vontades. Estela foi magra, negra, forte, ruiva, delicada, loira, agressiva e tantas outras coisas para me agradar. Por vezes tinha os olhos amarelos; em outras, pupilas felinas. Cheirava como flores, como terra banhada, e quando descobria minhas lembranças, buscava os odores da infância para me satisfazer. Fazia-se agitada, passiva, perspicaz e inocente. Encarnou Ísis, Afrodite e Freia. Suas variações eram tantas que cheguei a perder, aos poucos, a imagem da mulher que encontrei na primeira noite.

Conhecemo-nos de maneira conturbada. Caminhava pelas ruas certa noite, de volta para casa após o trabalho, quando avistei um casal em desarmonia. Um homem forte, corpulento e grosseiro em seus gestos ofendia a mulher com muitos impropérios. Baixei a cabeça, afastei-me e continuei o caminho original, respeitando a premissa de ignorar discussões alheias. Meus ouvidos, entretanto, permaneceram atentos. A iminência de uma agressão me fez abandonar as convicções iniciais. Uma reação irrompia de minha indiferença.

– Fale direito com a moça! – arrisquei, sem me preocupar com as consequências. Logo em seguida me arrependi.

– Tá falando comigo, cara? – ele esqueceu a mulher por alguns momentos para se ocupar de mim. – Não é nada – tentei corrigir e prosseguir meu caminho, mas fui impedido. Ele já havia se aproximado o suficiente. Tive pouco controle das palavras que saíram da minha boca em seguida. Trocamos algumas frases e quando faltaram argumentos, restou a agressão. Resisti ao primeiro golpe, mas o segundo transformou o meu mundo em um carrossel acelerado. Fui ao chão e absorvi algumas pancadas no abdômen antes de ouvir a mulher gritar por socorro. Algumas pessoas tentaram apartar a briga, e o agressor fugiu ao descobrir que a polícia fora chamada. Estela agachou ao meu lado e me ajudou a levantar. Seu sorriso preocupado fez com que as dores desaparecessem. Com voz suave e chorosa, indagou se eu estava bem.

– Seu namorado é lutador? – perguntei enquanto me sentava e arrumava a roupa.

– Ele não é ninguém.

– Ótimo. Isso explica o clube da luta.

– Vamos – ela sorriu –, levante-se.

Estela segurou minhas mãos e me puxou para cima. Tocou meu rosto e disse que eu precisava de cuidados. Respondi que estava bem, precisava ir para casa e, destilando uma finíssima ironia, comentei que estava feliz por ter sido útil. Ela insistiu nos cuidados e fomos até o seu apartamento. Foi quando conheci suas transformações pela primeira vez. Estela deixou-me sentado no sofá, foi ao banheiro e retornou em poucos segundos. Estava vestida de branco, uma espécie de uniforme hospitalar, e segurava uma bandeja com medicamentos, gazes e algodão.

– Então, você é médica...

– Não – ela corrigiu, enquanto apoiava os objetos sobre a mesa.

– Enfermeira? – arrisquei.

– Não seja tolo – negou. Sentou-se ao meu lado e correu um algodão umedecido sobre a marca em meu rosto.

Silenciei-me, sem chegar a nenhuma conclusão específica. Voltei para casa após os cuidados e prometi ligar no dia seguinte para dizer como estava. Combinamos um almoço e passamos a nos ver com frequência.

Estela me fazia muitas surpresas. Em meu aniversário de 40 anos fez-se híbrida e ofertou-se como presente. Sua pele era o mais suave tecido; cada parte de seu corpo estava temperada por um sabor distinto; a saliva em sua boca era um vinho de safra inexistente; tinha muitos braços e mãos para me tocar; e o sexo – me disse – era a reunião dos prazeres divinos. Ao se figurar daquela maneira, proporcionou-me as medidas de uma ilusão.

Nosso amor parecia perfeito, apesar de fantasioso. Dependente dos preceitos mundanos, entretanto, havia um impedimento à felicidade plena: eu era um homem casado e não poderíamos desfrutar de tais dádivas deliberadamente. Encontrávamo-nos às escondidas sempre que possível e éramos felizes à nossa maneira. Estela nunca contestava minhas razões, mas o tempo veio jogar suas implicações sobre a relação.

Eu procurava racionalizar os motivos pelos quais não abandonava o matrimônio por aquela mulher inacreditável. Perdido em tantos desatinos e fantasias, tentava dissecar tais emoções, enquanto desfrutava daquele amor sem igual. Perguntava-me por que mantinha aquela vida dupla, se o que tão bem me fazia estava apenas em um dos lados da escolha. Enquanto refletia, envolvia-me nos muitos braços que Estela inventava para me acariciar e nas bocas que trazia para me beijar.

Eu era a mais feliz das criaturas e, no entanto, deixava escapar a felicidade por causa de um incômodo. Questionava a todo o momento o porquê de minha insatisfação. Afinal, aquela mulher se recriava e se desfazia apenas para satisfazer minhas vontades. Jamais cobrava qualquer postura ou exigia uma posição estabelecida. Estela queria estar ao meu lado, e aquilo lhe bastava.

Passamos muitas noites em quartos alugados. Saciávamos nossa vontade e depois adormecíamos, ou assistíamos à televisão. Às vezes, simplesmente existíamos. Certa madrugada, depois de um banho juntos, paramos à janela e ficamos a observar as estrelas. Do outro lado, em nossa direção, à mesma altura, havia outra janela fechada, onde provavelmente outro casal destilava suas vontades. Nossa imagem se refletia ali e quando observei com mais cautela, percebi que Estela se mostrava idêntica à minha mulher. Tudo era igual: os cabelos, os olhos, o sorriso, a tensão no rosto...

Foi uma revelação. Tanto era o amor daquela mulher, que ela queria mimetizar aquela que estava mais presente em minha vida, de quem eu nunca me afastaria. Em silêncio concordamos que seria o fim: apesar de seus talentos, não poderia se converter em alguém que jamais seria realmente. Estela tirou os olhos de mim, deixou escorrer pela bochecha uma gota de vida e buscou o céu noturno que se abria diante de nós.

Não mais vi Estela como pessoa, mas toda vez que o céu escurece e eu olho para cima, sei que ela está lá. Desde aquela noite, nunca mais precisou se parecer com nada que não fosse verdadeiramente. É, talvez, a mais cintilante das estrelas, uma das mais autênticas. Errante, jamais ocupa o mesmo lugar no infinito. Durante uma viagem, pude vê-la próxima à vaidosa Cassiopeia;[1] em outras ocasiões, esteve mesclada aos cabelos de Berenice[2]. Está, provavelmente, reclamando seu lugar junto aos deuses celestiais. Creio, de certa forma, que jamais deixaremos de nos ver.



[1] A constelação possui o nome da rainha da mitologia grega, mãe da princesa Andrômeda.
[2] Coma Berenices ou Cabeleira de Berenice. O nome da constelação é uma referência à lenda de Berenice II, rainha do Egito que oferece seus cabelos aos deuses para garantir a sobrevivência de seu marido durante uma das guerras da Síria.


FIM

O conto Estela foi publicado no livro Anelisa Sangrava Flores, lançado pela editora Penalux em 2014. Se você gostou do conto e ficou interessado no livro, dê uma olhada nesse link aqui. Comentários são bem-vindos. Obrigado pela visita. 

Comentários

Meus livros