Máscaras
“O ser humano é o único que se falsifica. Um
tigre há de ser tigre eternamente. Um leão há de
preservar, até morrer, o seu nobilíssimo rugido.
E assim o sapo nasce sapo e como tal envelhece e
fenece. Nunca vi um marreco que virasse outra
coisa. Mas o ser humano pode, sim, desumanizarse.
Ele se falsifica e, ao mesmo tempo, falsifica o
mundo.”
(Nelson Rodrigues)
Não
sei dizer quando começou a obsessão com as máscaras. Quando percebemos, todos estavam
com seus rostos cobertos. Ontem mesmo, sentei no ônibus ao lado de um leopardo.
No topo da cabeça, duas pequenas orelhas pontilhadas de manchas pretas sobre um
fundo amarelado. Julguei que o objeto fosse de acrílico, mas era plástico.
Havia dessas coisas: as classes mais baixas não dispunham de muito dinheiro
para investir na confecção e acabavam improvisando. O resultado, às vezes, era
desastroso.
Bela
máscara, falei na primeira oportunidade, tentando chamar a atenção do leopardo.
Quando ele se voltou para mim, pude ver seus olhos amarelados pelo corte no
adereço. Talvez eu não tenha mencionado, mas havia máscaras para olhos também.
Começou com as lentes de contato coloridas. Adiante, os rumos da criatividade.
O leopardo não respondeu ao meu elogio. Ergueu uma das mãos como uma garra e
fez um som gutural. Cumprimentei-o com um aceno e seguimos viagem.
Cheguei
ao trabalho atrasado para variar. Pablo veio à minha mesa e reclamou dos prazos
do projeto em que trabalhávamos. Usava uma máscara de abracadabra. Alternou o
assunto e passou a me contar sobre suas aventuras no final de semana. Sentado
sobre a bancada, falou como se as palavras tivessem prazo de validade.
ABRACADABRA
ABRACADABR
ABRACADAB
ABRACADA
ABRACAD
ABRACA
ABRC
ABR
AB
A
Alguém
se aproximou sorrateiro. Colocou uma das mãos sobre o ombro de Pablo e
perguntou sobre o andamento do projeto. Ele disfarçou o embaraço pelos atalhos
da bajulação. Espetacular essa gaivota, chefe, disse referindo-se à máscara que
nosso gerente usava. É um mandrião, ele corrigiu. Pablo tentou escapar da
situação como pôde: ave magnífica, sem dúvida. Acabei por ajudá-lo. Abri uma
planilha no computador e mostrei ao chefe que o projeto estava no prazo.
Mantenha-o em dia, ele disse. Pigarreou, ajustou o nó da gravata e saiu. Tá
sabendo que ele vai ser promovido no final do ano? Pablo perguntou assim que o
gerente cruzou a porta da sala. Sei. E que diabos é um mandrião?, emendou.
Virei-me para o computador e fiz a pesquisa: Mandrião — Ave da família Stercorariidae, conhecida pelo
cleptoparasitismo. Cleptoparasitismo, nova pesquisa: forma de interação em que
um organismo rouba recursos de outro organismo, geralmente um alimento que o
outro capturou ou deixou armazenado.
Fui
atendido por um chacal fêmea quando fui ao banco na hora do almoço. Tirei do
bolso o boleto que precisava pagar e avisei que o código numérico não estava funcionando.
Estranho, ela disse. Pegou o papel e começou a digitar a sequência no
computador. Por que um chacal? O chacal uiva até a morte, ela disse. Olhou para
os lados, confirmou que não era observada e segredou: é o que tenho vontade de
fazer todos os dias, gritar até a morte. O chacal não é o símbolo de Anúbis? Ela
fez que sim com a cabeça e a máscara acompanhou o movimento, as orelhas compridas
do animal sacudindo para a frente e para trás. Os cabelos loiros também
balançaram, escapando pela parte de trás do adereço. Ela se levantou, pegou um
papel da impressora e me orientou a usar o novo código de pagamento.
Combinei
um drinque com a mulher-chacal no fim daquele dia. Ela estava sentada em uma
mesa próxima ao balcão quando cheguei. Não foi difícil identificá-la, apesar de
não estar mais transfigurada no cão egípcio. Usava uma máscara peculiar.
É
maia?
Não,
é celta. Uma amiga trouxe de fora.
Deve
ter custado uma fortuna.
Custou.
Você
bebe um chope?
Não.
Um Martini. Com duas azeitonas.
Pedi
as bebidas ao primeiro garçom que passou. Um chope e um Martini. Com duas
azeitonas. O homem-mosca anotou no bloquinho, pediu licença e se retirou para
atender outra mesa. O que significa?, perguntei ao examinar a máscara que ela usava.
Era toda moldada em couro, com ramificações que se entrelaçavam de uma
extremidade a outra, muito parecida com a folha de uma árvore. Os olhos estavam
expostos pelas duas aberturas na parte frontal e o corte para o nariz descia em
uma abertura até a boca, por onde escapavam lábios pintados de azul. Tive
vontade de lambê-los. Não significa nada, ela respondeu. Puxei assunto falando
de trabalho, mas ela retesou a conversa. Débito, crédito, transferência
eletrônica. O que quer saber? Sorri em resposta, aproveitando para experimentar
a bebida que havia acabado de chegar. Ela prosseguiu: se é para falar de
trabalho, vamos morrer de tédio. Recuei e disse que entendia. O que faço também
não é nada interessante.
A
conversa engrenou. Sorrimos de forma espontânea. Sorrimos quando sorrir
significava apenas ser cortês e também quando era apenas o pincel da novidade
falando por nós. Seu nome era Inês. Nome espanhol. Pura, casta ou cordeiro.
Pesquisei o que podia sobre o nome antes do encontro, mas, na hora, não tive
coragem de mencionar. Inês não me parecia nada daquilo. Faço aniversário hoje,
ela falou. Sério? Não, é brincadeira. Só queria ver sua reação.
Fomos
para minha casa depois do bar. Entre lençóis, ela confessou: lembra da história
do aniversário? Lembro. Faço 35. Então era verdade? Era, foi um dos motivos de
ter aceitado seu convite. Fui até a geladeira e peguei um bolinho recheado que
estava guardado há semanas, sobras do aniversário de um sobrinho. Enfiei um
palito de fósforo no doce e levei até o quarto. Risquei na lateral da caixa e
acendi. Não dá para comer, mas você pode fazer um pedido. Ela fez. Depois
apagou a chama com um sopro cuidadoso.
Inês
examinava alguns livros em minha estante quando regressei da cozinha.
Observei-a de um único ângulo, mas pude vê-la por vários outros. Os cabelos que
escapavam da máscara estavam amassados e desordenados pelo tempo na cama. Vi a
mulher um pouco acima do peso e as dobrinhas entre a barriga e as costelas.
Pude ver os homens que antes ocuparam meu lugar; homens de prazer e dor, homens
que sequer foram homens. Havia uma mulher também. Única, mas inesquecível. Vi
um aborto, o medo dos filhos na hora errada. Vi seu primeiro emprego, uma loja
em um shopping, horas de pé em um
salto desconfortável atendendo a desejos e a mau humor. Trocou de trabalho
outras nove vezes, o salário pouco, a perspectiva inexistente. A vida no banco
não parecia tão ruim daquele ângulo. Vi expectativas estéreis. Casa, marido e
filhos afogados em uma banheira rachada. Vi que gostava de artesanato, que
decorava seu apartamento com pequenos apetrechos de materiais reciclados. Fazia
maratona de comédias românticas no sábado à noite, enredos repetidos que não
tinham qualquer relação com sua vida amorosa. Foi à Índia certa vez. Juntou
dinheiro e foi. Classe econômica, hotel modesto. Economias que custaram uma
fortuna. Conheceu um guru por lá. Deuses de mil braços e conceitos difíceis de
explicar. Destruir para construir. Não era tão complicado. Queria ir para o
Egito também, mas não deu. Não por enquanto.
Ah,
então você também gosta do Egito!, ela comentou ao dedilhar a lombada de um livro
sobre Nefertite. Por isso reconheceu a máscara do chacal. Fiz que sim com a
cabeça. Ela tirou o livro do lugar e começou a passar as páginas. Ainda estava
nua, apenas a máscara celta a ocultar o rosto. Comentei o que havia descoberto
naquela tarde, que o chacal sequer existia no Egito. Não pude ver a expressão
de curiosidade por trás do adereço, mas sabia que tinha despertado sua atenção.
Prossegui: alguém confundiu o chacal com um bicho parecido, tipo um cão
selvagem, e a lenda pegou. Imagina só: você é um deus, e os súditos o associam
ao animal errado. Ela sorriu. Seus lábios não estavam mais azuis, as cores
espalhadas por partes distintas de meu corpo.
Pablo
soube de minha paixão por Inês após dois meses de encontros. Sem o menor
vestígio de hesitação, me fez a pergunta mais impertinente de seu repertório: e
então, como é o rosto dela? Repreendi meu amigo por sua indiscrição, mas ele
foi insistente. Tirou o telefone do bolso, pressionou a tela algumas vezes e me
pediu segredo. Era a foto de Cláudia, uma estagiária que trabalhava no RH da
empresa. Pude reconhecer os olhos castanhos e os cabelos anelados que se
escondiam por trás das máscaras que ela costumava usar. A foto trazia o rosto
nu de Cláudia, que sorria e fazia uma posição atrevida para a câmera. Sardas
avermelhadas polvilhavam as bochechas, a curva do rosto era angular e pequenas
depressões se formavam nas extremidades dos lábios. Era uma jovem de beleza
excepcional. Não diga nada a ninguém, meu amigo repetiu. Estamos saindo há
apenas uma semana. É nosso segredo. Concordei com a cabeça, ainda entorpecido
pela imagem que há pouco estava diante de meus olhos. Pablo, com a indolência
que lhe era peculiar, voltou a perguntar: e Inês, como é? Fui evasivo mais uma
vez. Afirmei que ela era uma mulher distinta, que não havia revelado seu rosto
ainda.
A
conversa com Pablo inquietou meus pensamentos. Transformou uma leve curiosidade
em obsessão. Uma semana apenas, uma semana de envolvimento com a estagiária, e ele
já estava com a foto do rosto dela em seu telefone. O desejo pelo rosto de Inês
não era novidade, mas eu estava aguardando a ocasião apropriada.
Inês
não pôde se encontrar comigo naquela noite. Sozinho em casa, elaborava
hipóteses quanto ao formato de seu rosto. Tentei dormir, mas estava agitado.
Fui até o computador e digitei um endereço. Era um site pornográfico. No menu de opções, selecionei a categoria mais
requisitada pelos usuários. Um filme apareceu no monitor. A atriz, apenas de
máscara, provocava o homem. Serpenteava em sua frente, enrodilhando-se em seu
corpo, tocando-o onde ele precisava ser tocado, ora gentil, ora com firmeza.
Copularam, treparam, satisfizeram-se. Em poucos minutos, o ápice: a atriz
remove a máscara e a ejaculação é despejada em seu rosto. Maskless facial cumshot. O gozo, o pensamento em Inês.
O
assunto das máscaras foi revisitado em sonho. Inês relutava ante meu pedido.
Exigiu explicações ao ceder. Queria saber a razão pela qual eu estava sempre
com o mesmo adereço. Não tem mistério, respondi. É só porque todos usam. Ninguém
estranha que você esteja sempre com a mesma?, ela emendou. Só no começo. Depois
deixa de ser relevante. Satisfeita com minha explicação, Inês levou as mãos à
cabeça e revelou a face. Havia um rosto de serpente sobre o adereço. Eu podia
ver as presas e a língua bifurcada. O susto me fez recuar. Inês ergueu
novamente as mãos e retirou a pele escamosa, uma segunda máscara. No lugar de
seu rosto, um rubi de cor púrpura, a face sólida como a pedra de sangue. Ela
seguiu, desgrudando camadas e mais camadas de seu rosto. Assustado, acordei.
Sou
direto em nosso encontro seguinte. Digo a Inês que desejo ver sua face. Ela é
reticente na resposta e se esquiva. Digo que sei o quanto de intimidade aquilo
exige de um casal. Pego em suas mãos para convencê-la de que já alcançamos
aquele estágio, mas ela profetiza que não deveríamos nos apressar. Acontecerá
quando houver de acontecer. Minha consciência discorda, mas aceito o argumento.
Daria o tempo que Inês julgasse necessário, mesmo que a recusa gotejasse
dúvidas em minha consciência.
Inês
adormeceu em minha cama certa noite após esgotarmos nossas energias. Cedi à
tentação diante da máscara a evocar o rosto de Circe em uma das pinturas de
Waterhouse. Virou-se para o lado durante um pesadelo e balbuciou palavras
incompreensíveis. A máscara prendeu no travesseiro e saiu do lugar, revelando
parte de seu queixo. Levei uma das mãos até seu rosto. Com um dos dedos puxei o
adereço com delicadeza, mas Inês despertou. Levantou-se da cama, preocupada em
cobrir o rosto e destruiu qualquer reconciliação com olhos de fúria.
Levou
algum tempo, mas consegui convencê-la a perdoar meu gesto impensado. Um caminho
de desculpas e agrados até reconstruir o que possuíamos. Um pedido especial
feito a um artesão a convenceu em definitivo. Presenteei-a com uma pequena
estátua do reencontro de Ulisses e Penélope. Aos pés de Ulisses, a inscrição:
Inês. Abaixo de Penélope, meu nome. Ela colocou o objeto sobre a estante e, emocionada,
atirou-se em meus braços. Tomou então a decisão que eu tanto ansiava: pôs a mão
sobre a nuca e removeu a máscara. Vi seu rosto alvo, um equilíbrio entre a
simetria e um leve desalinho. Os cabelos loiros caíram em suaves cachos sobre a
testa e pelos ombros. A mulher diante de mim revelava uma beleza que minha
expectativa não tinha sido capaz de elaborar. Chegou então minha vez. Tomando a
iniciativa, Inês colocou a mão por trás de meu pescoço e retirou a máscara. Surpreendeu-se
ao ver os olhos castanhos, a boca fina e a pele marcada pela barba por fazer — a
face idêntica à máscara que há anos eu usava.
FIM
O conto Máscaras foi publicado no livro Chame Como Quiser, lançado pela editora Penalux em 2017. Se você gostou do conto e ficou interessado no livro, dê uma olhada nesse link aqui. Comentários são bem-vindos. Obrigado pela visita.
Nossaaaaa! Muito bom, já fiquei apaixonado pelo conto :3
ResponderExcluirE queria ter uma máscara de chacal :/
Olá, tudo bem? Vamos providenciar essa máscara de chacal pra ontem? Rs. Grato pela leitura e pela visita. Abs!
ExcluirQue desfecho surpreendente! Carregado de simbolismo e reflexão. Adorei! :)))
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